- Psicóloga Josiane
- 28 de jun. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 28 de jun. de 2021
Meu nome é Rebecca, e sou um ciborgue. Especificamente, tenho 32 chips de computador dentro da cabeça, que reconstroem meu senso de audição.
Isso é chamado de implante coclear. Vocês se lembram dos Borg de "Star Trek", aqueles alienígenas que conquistavam e absorviam tudo à vista? Bem, sou eu. A boa notícia é que vim pela sua tecnologia e não pelas suas formas de vida humanas.
Na verdade, nunca vi um episódio de "Star Trek". Mas há um motivo: a televisão não tinha legendas quando eu era criança. Cresci com surdez profunda. Frequentei escolas regulares e tive que ler os lábios. Não conheci nenhuma outra pessoa surda até os 20 anos.
Os aparelhos eletrônicos eram principalmente de áudio na época. Meu despertador era minha irmã Barbara, que acionava o despertador dela e depois atirava algo em mim para eu acordar. Meus aparelhos auditivos eram muito resistentes, grandes, mas me ajudavam mais do que à maioria das pessoas. Com eles, eu conseguia ouvir música e o som de minha própria voz. Sempre gostei da ideia de que a tecnologia pode ajudar a tornar o mundo mais humano.
Eu costumava observar a cor do flash estéreo quando a música tocava e sabia que era só uma questão de tempo até meu relógio também poder mostrar som. Vocês sabiam que a audição ocorre no cérebro? No ouvido, há um pequeno órgão chamado cóclea, revestida por milhares de receptores chamados células ciliadas. Quando o som entra no ouvido, essas células ciliadas enviam sinais elétricos para o cérebro, que os interpretam como som.
Danos a células ciliadas são muito comuns: exposição ao ruído, envelhecimento, doenças. Minhas células ciliadas foram danificadas antes mesmo de eu nascer. Minha mãe foi exposta à rubéola quando estava grávida de mim. Cerca de 5% da população mundial tem perda auditiva significativa. Em 2050, espera-se que a quantidade dobre para mais de 900 milhões de pessoas, ou 1 em cada 10.
Para os idosos, já é uma em cada três. Com um implante coclear, chips de computador trabalham pelas células ciliadas danificadas. Imaginem uma caixa com 16 gizes de cera, e esses 16 gizes, combinados, precisam criar todas as cores do Universo. O mesmo ocorre com o implante coclear. Tenho 16 eletrodos em cada cóclea. Esses 16 eletrodos, combinados, enviam sinais ao cérebro, que representam todos os sons do Universo.
Tenho aparelhos eletrônicos dentro e fora da cabeça para fazer isso acontecer, inclusive um pequeno processador, ímãs dentro do crânio e uma fonte de energia recarregável. Ondas de rádio transmitem som por meio dos ímãs. A primeira pergunta que as pessoas me fazem sobre o implante coclear, quando ouvem sobre os ímãs, é se minha cabeça gruda na geladeira. Não, não gruda. Sei disso porque já tentei. Os ouvintes assumem que os surdos vivem num estado eterno de querer ouvir, porque não conseguem imaginar outro modo. Mas nunca desejei ouvir. Eu só queria fazer parte de uma comunidade como eu. Eu queria que todos fossem surdos. Acho que esse sentimento de pertencimento é o que conecta nossas histórias, e as minhas pareciam incompletas. Quando surgiram os implantes cocleares, na década de 1980, a operação era assustadora como um Frankenstein. Em 2001, o procedimento evoluiu consideravelmente, mas ainda eliminava qualquer audição natural existente. O índice de sucesso na compreensão da fala era baixo, talvez 50%. Se não funcionasse, não era possível reverter. Naquela época, também havia controvérsia sobre os implantes na cultura dos surdos. Basicamente, era considerado o equivalente a mudar a cor da pele.
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Resisti por um tempo, mas minha audição piorava rapidamente, e os aparelhos auditivos não estavam mais ajudando. Em 2003, tomei a difícil decisão de fazer o implante coclear. Eu só precisava interromper esse ciclo de perda desgastante, independentemente de a operação dar certo ou não, e eu achava realmente que não daria. Eu a considerava uma última opção antes de fazer a transição para a surdez total, que uma parte de mim desejava. O silêncio total é muito viciante. Talvez vocês tenham passado algum tempo em um tanque de privação sensorial e entendam o que quero dizer. O silêncio é capaz de expandir a mente. No silêncio, percebo o som. Quando assisto a um videoclipe sem som, consigo ouvir música. Na ausência de som, meu cérebro preenche as lacunas com base no movimento que vejo. Minha mente não está mais competindo com a distração do som. Está liberada para pensar de modo mais criativo. Também há vantagens em ter partes do corpo biônicas. Não dá para negar que é conveniente conseguir ouvir e poder desligar o som sempre que eu quiser.
Ouço quando preciso, e o restante do tempo não. A audição biônica não envelhece, embora as partes externas precisem, às vezes, ser substituídas. Seria muito legal regenerar uma parte danificada automaticamente, como um ciborgue real, mas a Advanced Bionics envia as minhas pelo correio. Ah, recebo atualizações, que são baixadas em minha cabeça. Não são compartilhadas por Wi-Fi, mas é parecido. Com o implante coclear, consigo transmitir música de meu iPod para minha cabeça sem fones de ouvido. Recentemente, fui a um concerto longo e maçante de um amigo...e, sem ninguém saber, ouvi os Beatles por três horas.
A tecnologia chegou tão longe, tão rápido. O maior obstáculo que enfrento como pessoa surda não é mais uma barreira física. É a maneira como as pessoas reagem à minha surdez, o modo antiquado como reagem a ela, com pena, condescendência e até raiva, porque isso apenas elimina a conexão humana alcançada pela tecnologia. Certa vez, tive uma colega de quarto de viagem que tinha ataques de raiva porque eu não a ouvia bater na porta quando a chave dela não abria. Se eu não estivesse lá, sem problemas, ela poderia pegar outra chave, mas, quando ela via que eu estava lá, a raiva dela subia à cabeça. Não se tratava mais de uma chave. Tratava-se da surdez não ser um motivo bom o bastante para a inconveniência dela. Ou o comercial sobre o homem surdo cujo bairro o surpreendeu com mensagens em língua de sinais de pessoas na rua. Todos que me enviaram o vídeo disseram que choraram. Perguntei: "E se ele não fosse surdo? E se a língua materna dele fosse o espanhol, e todos aprendessem espanhol? Você teria chorado?" E todos disseram que não. Eles não choraram por causa da barreira da comunicação. Choraram porque o homem era surdo. Mas vejo de modo diferente. E se os Borg aparecessem naquele vídeo e dissessem: "A surdez é irrelevante". Porque é o que eles dizem, não é? Tudo é "irrelevante". E então os Borg assimilassem o surdo, não por piedade, nem por raiva, mas porque ele tinha uma característica biológica que os Borg desejavam, inclusive capacidades linguísticas únicas. Eu preferiria ver esse comercial. Por que pensar em capacidade deixa as pessoas tão pouco à vontade? Vocês devem conhecer uma peça, mais tarde um filme, chamada "Filhos do Silêncio", de Mark Medoff. Essa peça, esse título, vem, na verdade, de um poema de Alfred Tennyson, que, na minha interpretação, diz que os seres humanos vistos como defeituosos foram criados por um Deus menor e vivem uma existência inferior, enquanto os criados pelo Deus real são de uma classe superior, porque Deus não comete erros. Na Segunda Guerra Mundial, estima-se que 275 mil pessoas com deficiência foram assassinadas em campos de extermínio especiais, porque não se encaixavam na visão de Hitler de uma raça superior. Hitler disse que se inspirou nos Estados Unidos, que promulgaram leis de esterilização involuntárias para "os incapazes" no início dos anos 1900. Essa prática continuou em mais de 30 estados até os anos 1970, com a última lei finalmente revogada em 2003. O mundo não está tão distante do poema de Tennyson. Essa tendência de fazer suposições sobre as pessoas com base na capacidade se revela em frases como: "Você é tão especial", "Eu não poderia viver assim" ou "Graças a Deus que não sou eu". Mudar a maneira como as pessoas pensam é como fazê-las largar um hábito. Antes do implante, parei de usar o telefone e mudei para o e-mail, mas as pessoas continuavam me deixando correio de voz. Ficavam chateadas por eu estar inacessível por telefone e por não retornar as mensagens. Continuei explicando a elas minha situação. Levaram meses para se adaptarem. Avançando rapidamente dez anos, vocês sabem quem mais odiava o correio de voz? A geração Y. E sabem o que essa geração fez? Padronizou as mensagens de texto para comunicação. Quando se trata de ignorar o correio de voz, não importa mais se você é surdo ou apenas egoísta. A geração Y mudou o pensamento das pessoas sobre o envio de mensagens. Ela redefiniu o padrão. Posso apenas lhes dizer o quanto adoro enviar mensagens? Ah, e mensagens em grupo. Tenho seis irmãos, todos ouvintes, mas não tenho menos consideração por eles. Todos nós enviamos mensagens. Vocês sabem como é emocionante ter um meio visual de comunicação que todos usam de verdade? Tenho uma missão agora. Como consumidora de tecnologia, quero opções visuais sempre que houver áudio. Não importa se sou surda ou se não quero acordar o bebê. Ambas são igualmente válidas. Designers inteligentes incluem várias maneiras de acesso à tecnologia, mas segregam esse acesso sob o termo "acessibilidade", que só o oculta de usuários tradicionais. Para mudar a maneira como as pessoas pensam, precisamos ser mais do que acessíveis, precisamos estar conectados. A Apple fez isso recentemente. Meu iPhone exibe automaticamente uma transcrição visual de meu correio de voz, ao lado do botão de áudio. Eu não conseguiria desligá-lo, mesmo que quisesse. Sabem o que mais? Netflix, Hulu, Amazon Prime não dizem mais: "Legendas ocultas para deficientes auditivos". Eles dizem "legendas", "ativado" ou "desativado", com uma lista de idiomas abaixo, inclusive o inglês. A tecnologia chegou tão longe. Nossa mentalidade só precisa recuperar o atraso.
